24.10.10

Cameron proíbe ministra muçulmana de assistir conferência islâmica

O primeiro-ministro britânico, David Cameron, proibiu a única ministra muçulmana de seu governo, Sayeeda Warsi, de assistir a uma conferência islâmica realizada neste domingo em Londres, informa neste domingo o jornal "The Guardian".

Warsi, de origem paquistanesa, membro da Câmara dos Lordes e sem ministério, recebeu instruções de Cameron para não comparecer ao evento considerado a maior reunião multicultural realizada na Europa.

O objetivo da conferência é melhorar as relações entre as diversas comunidades, mas seus críticos assinalam que alguns dos oradores previstos justificaram publicamente os atentados suicidas e falaram em favor da Al Qaeda, homofobia e terrorismo.

Warsi, advogada e respeitada dentro da comunidade islâmica internacional, acredita que polemizar abertamente com os extremistas em atos públicos é a forma mais eficaz de enfrentar ao fundamentalismo do que negar-se a isso.


Fonte: Folha de São Paulo

10.10.10

Esplendor e diversidade da arte islâmica

10/10/2010 - 08h00
Esplendor e diversidade da arte islâmica
EUCLIDES SANTOS MENDES
DE SÃO PAULO

Com mais de 300 obras oriundas da Síria, do Irã e de instituições brasileiras, a exposição "Islã" (no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro de 12/10 a 26/12, em São Paulo de 18/1 a 27/3 e em Brasília de 26/4 a 10/7) cobre 13 séculos de história (do 8º ao 20).

Seu acervo (veja galeria) reúne peças de ourivesaria, mobiliário, tapeçaria, vestuário, armas, utensílios, mosaicos, cerâmicas, objetos de vidro, iluminuras, pinturas, caligrafia e instrumentos científicos e musicais, que testemunham a diversidade cultural do islã.

Em entrevista à Folha, o professor de árabe na USP Paulo Daniel Farah --curador, com Rodolfo Athayde, da exposição-- comenta algumas obras em destaque e salienta que "as identidades islâmicas são múltiplas, pois foram incorporadas e reelaboradas tradições de regiões fundamentais como a África, os países árabes (tanto africanos quanto asiáticos) e a Ásia em geral".

Folha - Por que a maioria das obras que compõem a exposição veio da Síria e do Irã?
Paulo Daniel Farah - A Síria abrigou a primeira dinastia islâmica, a Omíada (661-750), cuja sede era em Damasco, e possui muitas das primeiras e mais significativas obras de arte islâmicas. Por isso, a Biblioteca e Centro de Pesquisa América do Sul-Países Árabes [BibliASPA, instituição dirigida por Farah] vinha negociando uma exposição com Damasco havia quatro anos, e que se insere numa proposta de cooperação arqueológica que inclui missões brasileiras na Síria, publicação de artigos científicos e curso de arqueologia a ser oferecido a partir do próximo mês em São Paulo, na BibliASPA.

Essa negociação permitiu expor no Centro Cultural Banco do Brasil muitas obras que nunca saíram da Síria e que permitem ter uma visão bastante abarcante da sociedade muçulmana. Com o intuito de refletir a diversidade cultural islâmica, também se expõem obras de países como Irã, Marrocos, Mali, Mauritânia, Líbia, Líbano, Burkina Fasso, Níger, Nigéria e Brasil.

Quais são as peças em destaque?
Entre outras, uma pedra de basalto na qual se entalhou um texto, no século 8º, um dos principais vestígios da escrita árabe.

Uma parte da exposição é dedicada ao palácio do deserto Al Hayr Al Gharbi (séc. 8º, na Síria), do qual se expõem esculturas, estuques ornamentados, barreiras, adornos e outros objetos que permitem observar influências locais na arte islâmica e a percepção que mescla a crença na unidade de Deus e na inexistência de intermediários na relação com o divino. No islã, Deus é único, mas sua criação é múltipla. Tal multiplicidade, ordenada conforme leis que desvendam o Criador, reflete-se nos arabescos, nas composições geométricas e em sua miríade de formas. Trata-se da multiplicidade com base na unidade.

Também destacaria as obras da sala dedicada à caligrafia, uma arte islâmica por excelência, extremamente refinada. Em pedra, madeira, tecido, metal, papiro, pele de gazela, cerâmica e outros suportes, as obras caligráficas revelam uma diversidade notável de estilos. A adoção da caligrafia árabe em boa parte dos territórios entre o Atlântico e o Índico, suporte gráfico que também serviu como ornamento na arte, exerceu um fator de unificação impressionante no "Dár al-Islám", as terras de presença islâmica.

Qual é o papel histórico-cultural do islã na formação do Ocidente?
Durante o período contemporâneo à Idade Média europeia, os países da órbita islâmica aprimoravam diferentes áreas da ciência. Cidades como Bagdá, Damasco, Cairo, Córdoba, Fez e Samarcanda abrigaram grandes centros de estudos.

Para citar alguns nomes de grandes sábios que influenciaram a Europa e outras regiões, há que se mencionar Abu Ali al Hussain Ibn Sina (Avicena, 980-1037), autor de um "Cânone de Medicina" cuja tradução latina foi utilizada na Europa durante séculos, e Ibn Battuta (1304-68), erudito versado em exegese, retórica, lógica e direito que viajou em busca do conhecimento e reuniu em "Rihla - Obra-Prima das Contemplações sobre as Curiosidades das Civilizações e as Maravilhas das Peregrinações" um relato único sobre cidades como Mogadício, Mombaça, Damasco, Jerusalém, Meca, Kufa, Cairo e muitas outras.

A exposição apresenta instrumentos associados ao desenvolvimento científico, como astrolábios e quadrantes, que serviram, no contexto da astronomia islâmica, para corrigir tabelas astronômicas e de coordenadas geográficas e para calcular a obliquidade da eclíptica com uma precisão muito maior do que jamais se alcançara antes.

É possível recordar que o navegante Ibn Majid, que acompanhou o português Vasco da Gama em suas viagens, redigiu em 1489 um manual sobre a arte da navegação. E que matemáticos árabes introduziram na Europa os algarismos conhecidos como arábicos e o conceito do número zero (que veio do árabe "sifr"), fundamental para chegar aos números negativos. A trigonometria e a álgebra (de "aljabr", ciência árabe que traduz a ideia de "forçar cada termo a ocupar seu devido lugar") foram desenvolvidas, sobretudo, por adeptos do islã. Em 875, Muhammad al Khwarizmi (de onde veio o termo algarismo) utilizou uma letra para representar a incógnita; o uso do "x" vem de "shay" (coisa, em árabe).

No caso do Brasil, é fundamental recordar que muçulmanos organizaram o principal levante urbano contra a escravidão na América: a Revolta dos Malês, em 1835, em Salvador. Desde cedo, desenvolveram a noção de pertencimento à "umma", a comunidade islâmica, como se verifica na narrativa do imã Abdurrahman Al-Baghdádi, o primeiro relato de um erudito muçulmano acerca do Brasil (o texto é analisado em "Deleite do Estrangeiro em Tudo o Que É Espantoso e Maravilhoso - Estudo de um Relato de Viagem Bagdali"; Al-Baghdádi esteve no Brasil no século 19).

Como os povos islâmicos encaram a própria história e cultura?
O saber e a reflexão foram bastante valorizados desde a época do profeta Muhammad, a quem a primeira palavra revelada foi "lê" (iqra'). Entre os "ahadith", ditos atribuídos a Muhammad, há vários que incentivam a pesquisa, como "buscai o conhecimento ainda que na China" e "buscai o conhecimento do berço até o túmulo".

O Alcorão e os ensinamentos sobre a importância da investigação anunciavam uma atitude que estimularia distintas áreas do conhecimento e resultaria em inovações científicas notáveis.

Em Bagdá, a Casa da Sabedoria ("Bayt al-Hikma"), fundada em 830, liderou um grande projeto de tradução para o árabe que também contou com a ajuda de sábios cristãos e de outras religiões. Nesse local, produziu-se um conjunto significativo de literatura científica em língua árabe, com livros traduzidos e comentados do grego, sânscrito, siríaco e persa, entre outros, além de muitos tratados originais. Atualmente, a reflexão crítica continua a fazer-se presente em centros de pesquisa de países majoritariamente islâmicos.

Desde o princípio, os muçulmanos interagiram com muitas culturas e populações de religiões distintas. Assim, as identidades islâmicas são múltiplas, pois foram incorporadas e reelaboradas tradições de regiões fundamentais como a África, os países árabes (tanto africanos quanto asiáticos) e a Ásia em geral. Do Atlântico ao Índico, a presença muçulmana envolve reflexões e percepções variadas que refletem essa diversidade cultural.


Fonte: Folha de São Paulo