31.7.08

Banco sem pecados

Adaptar produtos financeiros ao Alcorão virou um bom negócio para os bancos ocidentais, que já lideram o mercado de títulos islâmicos. Sem cobrar juros e longe da especulação, eles obedecem os preceitos religiosos e já atraem até clientes que não seguem as leis do Islã

por Camila Hessel

Imagine um financiamento imobiliário em que as parcelas podem diminuir caso o imóvel se desvalorize. Ou um empréstimo bancário sem a cobrança de juros. Bom demais para ser verdade? Não para os clientes dos bancos islâmicos, que oferecem produtos e serviços compatíveis com a sharia, a lei religiosa que orienta não apenas os preceitos da fé, mas também o dia-a-dia (e as finanças) dos muçulmanos. Diz a sharia que dinheiro não pode gerar dinheiro e, portanto, estão proibidos a cobrança e o recebimento de juros. Pelas regras, "o dinheiro só existe para promover o desenvolvimento do mundo". Tradução: todo e qualquer recurso de um seguidor do Alcorão deve ser destinado a investimentos produtivos. Assim, o valor de qualquer produto financeiro deve refletir o de um bem tangível estabelecido como lastro. Se o preço de um imóvel hipotecado cai, por exemplo, o valor da hipoteca (ijara) seguirá na mesma direção. A relação entre banco e cliente é semelhante à de uma sociedade, em que lucro e prejuízo são compartilhados.

Mas as proibições não param por aí. Nenhum investimento pode ser direcionado a atividades vistas como pecado (haram). São condenadas pela sharia a fabricação e a comercialização de bebidas alcoólicas, carne de porco e armas. Jogos de azar, pornografia e todos os ramos da indústria do entretenimento, como o cinema e a televisão, também são atividades pecaminosas. É vetada ainda qualquer forma de especulação. "As finanças islâmicas são muito mais do que uma modalidade onde os juros são proibidos", afirma Angela Martins, diretora da área internacional do banco ABC Brasil. Apesar de ter capital árabe e uma subsidiária islâmica no Bahrein, o ABC é um banco comercial comum. Angela trabalha na instituição há 11 anos, interessou-se pelo assunto e o elegeu como tema de sua tese de mestrado, depois transformada no livro A Banca Islâmica (editora Qualitymark).


"A essência da banca islâmica é evitar que qualquer das partes envolvidas numa transação financeira leve vantagem", diz Angela. Por esse motivo, os bancos islâmicos estão sendo cada vez mais procurados por clientes que não seguem a religião de Maomé, especialmente no Reino Unido e em Dubai, onde a presença de grandes comunidades muçulmanas estimulou a oferta desse tipo de serviço. Nesses países, os clientes são atendidos tanto por bancos árabes quanto por ocidentais que seguem a sharia. Instituições como HSBC, Citibank, Deutsche Bank, Lloyds, Barclays e Merrill Lynch se lançaram nesse mercado em busca de um pedaço da riqueza muçulmana, turbinada, nos últimos anos, pela alta nos preços do petróleo. No começo, as iniciativas desses bancos eram dirigidas ao segmento de títulos emitidos por empresas e pelo governo para financiar grandes empreendimentos.

Chamados de sukuk, plural da palavra em árabe antigo utilizada para designar os cheques, esses papéis foram criados na década de 70, à semelhança dos títulos de dívida tradicionais, os bonds. Por todos os impedimentos envolvidos em seu desenho, os sukuk eram vistos como aberração fora do mundo muçulmano. Mas a explosão imobiliária em Dubai mostrou aos executivos de bancos europeus e americanos que eles eram a chave para o cofre de boa parte das fortunas do Oriente Médio. Isso porque grandes hotéis e parte da infra-estrutura portuária do emirado árabe foram financiados com sukuk e deram ótimos retornos aos seus investidores.

Há uma outra característica nos títulos islâmicos que chamou a atenção dos ocidentais: eles não são outorgados a empresas que tenham dívidas de mais de um terço de seu valor de mercado (medido pelo preço das ações ou pelo total dos ativos, quando a empresa não é de capital aberto). Quando se deram conta de que essa restrição havia livrado investidores fiéis ao islã dos prejuízos com a bolha da internet, os analistas financeiros se convenceram de que valia a pena tirar esse mercado das sombras. De acordo com a agência de classificação de risco Standard & Poors, os sukuk já movimentaram US$ 500 bilhões e devem superar US$ 1 trilhão até o final da década. O volume de recursos captados com sukuk cresceu 74%, de 2005 para 2006, e 114% em 2007. A participação dos bancos internacionais saltou junto. Se, em 2006, apenas HSBC e Merrill Lynch figuravam entre os dez maiores financiadores das operações, em 2007, Citibank, Deutsche Bank, Standard Chartered e Barclays entraram para a lista.

O grande impulso veio em 2001, como conseqüência dos ataques de 11 de setembro. O preconceito generalizado contra os muçulmanos se refletiu no mercado financeiro e nos investimentos realizados por eles. Contas correntes foram congeladas, sob suspeita de financiamento de células terroristas. Bancos e fundos de investimento de capital árabe foram processados pelas famílias das vítimas do ataque às Torres Gêmeas, em Nova York, que os acusaram de financiar a Al-Qaeda. Estimativas levantadas por grandes bancos de investimento mostram que investidores árabes retiraram mais de US$ 800 bilhões de bancos americanos e europeus, entre setembro de 2001 e setembro de 2002.

SEM ESPECULAÇÃO
Regras que os bancos devem observar para operar de acordo com a sharia

JUROS>>> Há 1,4 mil anos, o profeta Maomé determinou que dinheiro não pode gerar mais dinheiro. Todos os recursos devem ser canalizados para investimentos produtivos. Qualquer lucro obtido de outra maneira é considerado usura. Por isso, um seguidor do islã não pode pagar ou receber juros.

ESPECULAÇÃO>>> Toda transação deve ser lastreada por um bem ou serviço que já exista e cujo valor seja determinado na assinatura do contrato, eliminando o risco de especulação (gharar). Os recursos investidos por um cliente são destinados à compra e venda de commodities. O lucro é compartilhado entre o cliente e o banco.

ENDIVIDAMENTO>>> Companhias com endividamento superior a um terço de seu valor não podem se beneficiar dos serviços de um banco islâmico.

ATIVIDADES IMPRÓPRIAS>>> Bancos não podem investir em atividades condenadas pela sharia, como a produção e comercialização de bebidas, tabaco, armas e jogos, além de cinema e TV.


Para minimizar o preconceito e evitar que os bancos islâmicos sejam efetivamente utilizados para financiar atividades terroristas, uma série de medidas de supervisão foi posta em curso. Sediado em Londres, o Institute of Islamic Banking and Insurance coordena a discussão de iniciativas de monitoramento de dois aspectos principais: as remessas de dinheiro feitas por muçulmanos a seus países de origem e as doações a instituições de caridade islâmicas. O fluxo de recursos também é analisado segundo uma metodologia desenvolvida em 2003 pelo FMI, pelo Banco Mundial e pela Financial Action Task Force, força-tarefa mundial que previne a lavagem de dinheiro.

No Brasil, o banco ABC foi o único a captar recursos com produtos financeiros islâmicos. Angela Martins e um colega da sede do banco no Bahrein montaram o primeiro título de financiamento ao comércio exterior (murabaha), em 1997. O ABC fez vários deles no início da década, captando quantias entre US$ 10 milhões e US$ 15 milhões. Os contratos foram estruturados tendo como base operações de exportação de empresas brasileiras. "Hoje estamos costurando uma nova operação, de empréstimo sindicalizado", diz Angela. Há vários bancos envolvidos e a captação poderá superar US$ 100 milhões.


A construtora brasileira WTorre utilizou murabahas para financiar seu primeiro projeto nos Emirados Árabes. Trata-se da Desert Rose, um empreendimento com condomínios residenciais, torres de escritórios e centros comerciais em construção na cidade de Sharjah, vizinha a Dubai. O sócio local da WTorre, Najieb Khoory, afirma que a escolha foi motivada pela estrutura de sociedade que existe entre o cliente e o banco. "O financiamento islâmico garante uma proteção adicional", diz Khoory. "Como as condições são todas preestabelecidas e o risco compartilhado, há uma clara vantagem financeira." Khoory não revela o total captado até o momento, mas o valor do projeto é estimado em US$ 1 bilhão.

Em busca da simpatia de indivíduos com fortuna estimada em US$ 1,5 trilhão (segundo relatório da Capgemini e do Merrill Lynch), o HSBC foi um dos primeiros bancos internacionais a se lançarem nesse mercado, com a criação, em 1998, do HSBC Amanah. "No começo, nosso único foco eram os produtos corporativos", disse a Época NEGÓCIOS, de Dubai, Nabeel Shoaib, presidente regional do HSBC. "Hoje também trabalhamos com produtos de varejo", diz Shoaib. O HSBC Amanah tem sede em Dubai e agências na Malásia, Arábia Saudita, em Cingapura e no Reino Unido.

Nenhuma tarifa é cobrada pelo gerenciamento de uma conta corrente, por exemplo. Os fundos de investimento (mudharaba) estabelecem antecipadamente como e em que produtos os recursos do cliente serão investidos. O banco se encarrega de comprar e, posteriormente, de vender esses produtos. O lucro obtido com a transação é dividido com o cliente, numa proporção determinada no fechamento do contrato. Para uso de cartão de crédito, o correntista paga uma taxa mensal pelo processamento dos pagamentos. Os seguros (takaful) prevêem a garantia conjunta do bem segurado. Assim, cliente e banco compartilham tanto os lucros quanto as perdas da operação. Para que possa ser comercializado pelo banco, um produto precisa ser aprovado por um conselho de estudiosos da sharia, o sharia board. Religiosos especializados em finanças avaliam cada detalhe para certificar aos investidores que nenhuma regra foi quebrada. Os "selos de aprovação" são chamados fatwa. Só assim o cliente do banco islâmico pode ter certeza de que seu dinheiro não será investido em algo proibido.

O xeque Hussein Hamid Hassan, 76 anos, é o maior expoente dos estudiosos da sharia. Nascido num vilarejo pobre do Egito, é formado em direito pela Universidade de Al-Azhar, no Cairo, e em economia pela Universidade de Nova York. Foi ele quem inventou o primeiro sukuk, em 1975. Antes disso, em 1963, atuou como consultor na criação do primeiro banco islâmico moderno, o Tabung Haji, da Malásia. "Naquele tempo, as pessoas achavam a idéia de um banco que não cobrasse juros tão absurda quanto uma destilaria de uísque sagrado", disse Hassan a Época NEGÓCIOS. Hoje ele preside os sharia boards de 15 bancos, incluindo o Deutsche Bank e o britânico Amiri Capital, e supervisiona o principal órgão regulador, a Accounting and Auditing Organization for Islamic Institutions, e a agência islâmica de classificação de riscos (rating).

GUARDIÃO DA SHARIA O xeque Hussein Hamid Hassan, 76 anos, atuou na criação do primeiro banco islâmico moderno. Hoje preside os sharia boards de 15 bancos e os ajuda a desenhar produtos de acordo com a lei islâmica

Especialistas como Hassan são raros. Além do conhecimento religioso, precisam ter domínio de finanças e fluência em inglês. O forte crescimento do mercado nos últimos cinco anos e a chegada dos bancos internacionais fazem com que os poucos estudiosos participem de um grande número de conselhos. Os mais experientes chegam a receber até US$ 100 mil por produto aprovado. Hassan diz que o importante é saber que os membros do conselho não têm nenhum tipo de influência no dia-a-dia da instituição. "Nossa única preocupação é assegurar que os produtos sejam compatíveis com a sharia." O maior banco islâmico do mundo é o Al Rajhi Bank, da Arábia Saudita, seguido pelo Kuwait Finance House, que atua no Oriente Médio, na Turquia e na Malásia. Dominic Selwood, que coordena a área de finanças islâmicas no Deutsche Bank, disse ao Financial Times que os produtos islâmicos são a principal fonte de inovação hoje. "Os bancos ocidentais irão investir para ter participação num mercado que já movimenta 1% dos ativos bancários do mundo."

ROUBANDO A CENA Bancos ocidentais começam a se destacar no ranking das instituições que operam com títulos islâmicos



Fonte: Época Negócios


A brasileira das finanças islâmicas


Por Camila Hessel

Ângela Martins trabalha em bancos há mais de vinte anos. Só no ABC Brasil, onde é diretora da área internacional, já são 11 anos. Foi em seus primeiros anos no banco de capital árabe que ela tomou contato com os títulos financeiros que obedecem a preceitos religiosos e se apaixonou pelo assunto, que acabou virando o tema de sua tese de mestrado. Depois de trocar idéias com um colega na sede do banco ABC, que fica no Bahrain, ela visitou diversos bancos islâmicos no Oriente Médio. Católica, sem ascendência árabe, ela diz que o interesse sobre o assunto é estritamente profissional e que nunca pensou em se converter muçulmana. Ângela é autora do único livro em língua portuguesa sobre o assunto: A Banca Islâmica, da Editora Qualitymark. Conheça mais a respeito dessa escola financeira que é considerada uma das principais fontes de inovação no setor bancário na entrevista a seguir.

EN - Quais são as principais características das finanças islâmicas?
Ângela Martins -
Todas as estruturas são montadas em torno de um princípio fundamental que é o de evitar a especulação. Na banca islâmica, todas as escolas legais trabalham para evitar que quem tem dinheiro tire vantagem daquele que não tem - ou que precisa dele. Em muitas circunstâncias, os instrumentos são considerados semelhantes aos de bancos tradicionais justamente por que nem todos os produtos e serviços existentes num banco comum contêm elementos especulativos. Por outro lado, num banco islâmico não existem muitos produtos do mercado financeiro tradicional como, por exemplo, os derivativos. No fundo, o que um banco islâmico faz pode ser comparado ao comércio. Para todo título emitido existe um produto tangível por trás, um lastro. Isso porque tudo o que você quiser comprar ou vender é saudável dentro do islamismo.

EN - Mas a cobrança de juros é proibida, certo?
Ângela -
Diferentemente do catolicismo, em que o rico nunca vai para o céu, no islamismo, o dinheiro deve ser usado para fazer a economia crescer. Não há nada de errado em ganhar dinheiro, desde que sua atividade agregue algum tipo de valor. A única proibição é a de que dinheiro não pode gerar mais dinheiro. E assim, fica proibida a cobrança ou o recebimento de juros. No Islã, a crença é de que o dinheiro existe para circular. Ele precisa ser utilizado, posto para girar para que não seja consumido pelo zakah, que é uma espécie de imposto de renda. Não há nada de errado com o lucro, tampouco. Imagine que uma pessoa quer comprar um carro, mas não tem dinheiro. Você pode comprá-lo e revendê-lo para ela a prazo, cobrando um prêmio por isso. Esse tipo de transação é perfeitamente aceita e considerada justa. O que não se pode fazer é especular.

EN - Os produtos e serviços financeiros islâmicos passam por um processo de aprovação específico?
Ângela -
Sim, eles são avaliados por um conselho de estudiosos da lei islâmica, a sharia. Por isso esses órgãos são chamados de sharia boards. E é nos sharia boards que reside uma das grandes dificuldades da banca islâmica hoje, que é a carência de padronização. E por que isso? Porque muitos bancos têm seus conselhos formados por estudiosos de escolas legais diferentes. Existem cinco escolas principais: hanafitas, malequitas, chafeitas, hambanitas e jafaritas. Cada uma delas tem entendimentos diferentes a respeito de diversas questões. Conseqüentemente, o que um determinado estudioso considera compatível com a lei islâmica pode ser tido como inadequado por outro.

EN - Em que países as finanças islâmicas estão mais disseminadas?
Ângela -
Muito embora tenham florescido na região do Golfo, em países como Arábia Saudita e Bahrain, a Malásia é um centro de desenvolvimento de produtos muito importante. O primeiro sukuk (título islâmico formatado à semelhança de um título de dívida tradicional, também conhecido como bond), por exemplo, nasceu lá, como um produto para o mercado local. Em países onde a comunidade muçulmana é relevante, a banca islâmica também tem uma presença forte, como no Reino Unido, por exemplo.

EN - Algumas estatísticas, como a apresentada pelo segundo maior banco islâmico do mundo (a Kuwait Financia Bose) revela que 40% de seus clientes na Malásia não são seguidores da fé islâmica. Que atrativos os não-muçulmanos vêem nas finanças islâmicas?
Ângela -
Os investidores de bancos convencionais se sentem atraídos pelas finanças islâmicas por que as enxergam como uma forma mais ética de fazer banco. Existe uma percepção de que há uma preocupação maior com o cliente, um cuidado, visto que a estrutura de sociedade torna o banco um devedor solidário do cliente. Eles partilham os resultados da transação, tanto no ganho quanto nas perdas. É um modelo mais ético, acho que a palavra é mesmo essa. Além disso, o islamismo é a religião que mais cresce no mundo. É natural, portanto, que haja um interesse crescente em entender e seguir os preceitos dessa religião.

EN - O que acontece com o cliente de um banco islâmico que deixa de pagar a prestação de um financiamento, por exemplo?
Ângela -
Normalmente, não se cobra nenhuma taxa. Mas as condições variam de uma instituição para outra. De toda maneira, as condições são sempre detalhadamente negociadas no momento da celebração do contrato. Então, se o banco decidir cobrar uma taxa de processamento da cobrança, por exemplo, sua incidência e seu valor terão sido negociados previamente. Mas isso é muito raro. De modo geral, o banco corre o risco de inadimplência. É esperado dele, aliás, que corra esse risco. É justamente por isso que se percebe que o trabalho de financiamento que ele faz agrega algum tipo de valor.

EN - E como funciona o processo de avaliação de crédito de um cliente?
Ângela -
É semelhante ao de um banco tradicional, mas um pouco mais complexo. A avaliação do objeto do contrato, do projeto que se quer desenvolver com os recursos que se toma do banco é realizada de maneira muito mais aprofundada. Isso porque mais do que um cliente, quem trabalha com um banco islâmico acaba se tornando sócio dele.

EN - Existem também restrições a determinadas atividades, certo?
Ângela -
Sim. Indústrias como as de carne de porco e bebida alcoólica são proibidas. Então, um banco islâmico jamais financiaria a compra de grãos que fossem destinados à produção de bebida, por exemplo. A produção de armas e a indústria de jogos de azar também ficam de fora. A avaliação que se faz do projeto e da empresa é extensa. O financiamento a um hotel é perfeitamente possível. Mas se um cassino fizer parte do complexo, o negócio é inviabilizado. Ao fazer a avaliação é preciso ir bem fundo para entender se de alguma forma - direta ou indireta - esses recursos serão utilizados para financiar uma atividade que não seja permitida pela sharia.

EN - E se a empresa tiver no seu controle investidores judeus, por exemplo. Será que existe algum tipo de restrição?
Ângela -
Em tese não teria. Agora muito dificilmente uma empresa que tenha judeus no seu controle irá buscar algum tipo de financiamento islâmico. O simples fato de ser judeu para um muçulmano não teria essa restrição. Pode haver algum tipo de resistência em trabalhar em conjunto, mas não há qualquer espécie de restrição explícita. Eu nunca vi isso escrito em lugar nenhum.

EN - Conte-nos um pouco da sua história: como uma brasileira foi parar no mundo das finanças islâmicas?
Ângela -
Uma brasileira cristã, ainda por cima... e sem nenhuma gotinha de sangue árabe. Por isso achei todo esse mundo ainda mais fascinante. Se eu fosse muçulmana, talvez não fosse tão interessante, provavelmente eu já estaria acostumada com o que inicialmente vi de tão diferente. Quando vim trabalhar no ABC Brasil ele ainda se chamava ABC Roma e era controlado por Roberto Marinho. Era um banco brasileiro controlado por um grupo brasileiro. Mas desde 1997, quando o capital foi adquirido pelo Arab Banking Corporation, tomei contato com a existência dos títulos de financiamento ao comércio exterior, os murabahas. Consultei um colega que trabalhava na sede do ABC em Bahrain e ele teve o maior prazer em me explicar tudo.

EN - E você enfrentou algum tipo de dificuldade por ser mulher?
Ângela -
Por desconhecimento, no início, achei que poderia encontrar algum tipo de resistência, por ser mulher. Quebrei a cara. Acabei fazendo amigos fantásticos. Costumo dizer que o Oriente Médio é o lugar em que tenho mais facilidade de montar minha agenda. As pessoas chegam a desmarcar viagens para nos receber. Nunca tive de enfrentar nenhum tipo de situação complicada ou onde não fosse recebida de braços abertos. A primeira vez que visitei bancos islâmicos no Oriente Médio em 1997 cheguei até mesmo a visitar bancos islâmicos na Arábia Saudita, que é um país extremamente fechado. Precisei de uma autorização especial para visitar o banco, onde só entravam homens. Lá fiz a minha apresentação e tenho um ótimo relacionamento com eles. Outra coisa interessante é que nunca ninguém tentou me "catequizar", me convencer a mudar de religião. E isso eu acho muito fascinante. No começo até me perguntavam se eu era muçulmana e eu explicava que não e que não via razão para me converter já que meu marido e meus filhos são cristãos. Mesmo assim todos me respeitam muito como estudiosa e os executivos do banco têm grande orgulho do fato de eu ter escrito um livro sobre o tema. Eu costumo dizer que foi mais difícil a minha trajetória como mulher dentro da indústria financeira brasileira do que no âmbito dos bancos islâmicos, dentro do ABC.

EN - Você coordenou captações de recursos usando murabahas no início da década. O que vem a seguir para o Brasil no mercado de finanças islâmicas?
Ângela -
Estamos trabalhando numa operação grande, de empréstimo sindicalizado, que envolve vários bancos e sobre a qual infelizmente não posso dar maiores detalhes. A previsão é de que tudo esteja aprovado e pronto para ser divulgado até o final do ano. Mas, de toda maneira, acho que estamos num momento muito interessante. Os países emergentes e os investimentos alternativos estão em alta. Digo que aqui no ABC estamos no melhor de dois mundos. Somos um banco com capital majoritariamente árabe que atua num mercado aquecido para investimentos como o Brasil, que tem economia grande, diversifica e produz muito alimento num período em que o mundo está carente de alimento... Temos presença em três países produtores de petróleo, onde a riqueza vem crescendo à medida que os preços da commodity sobem. Então é muito natural que haja um interesse mútuo e cada vez maior em intensificar os negócios e, com isso, virão também as operações financeiras nos moldes islâmicos.


Fonte: Época Negócios