31.7.08

A brasileira das finanças islâmicas


Por Camila Hessel

Ângela Martins trabalha em bancos há mais de vinte anos. Só no ABC Brasil, onde é diretora da área internacional, já são 11 anos. Foi em seus primeiros anos no banco de capital árabe que ela tomou contato com os títulos financeiros que obedecem a preceitos religiosos e se apaixonou pelo assunto, que acabou virando o tema de sua tese de mestrado. Depois de trocar idéias com um colega na sede do banco ABC, que fica no Bahrain, ela visitou diversos bancos islâmicos no Oriente Médio. Católica, sem ascendência árabe, ela diz que o interesse sobre o assunto é estritamente profissional e que nunca pensou em se converter muçulmana. Ângela é autora do único livro em língua portuguesa sobre o assunto: A Banca Islâmica, da Editora Qualitymark. Conheça mais a respeito dessa escola financeira que é considerada uma das principais fontes de inovação no setor bancário na entrevista a seguir.

EN - Quais são as principais características das finanças islâmicas?
Ângela Martins -
Todas as estruturas são montadas em torno de um princípio fundamental que é o de evitar a especulação. Na banca islâmica, todas as escolas legais trabalham para evitar que quem tem dinheiro tire vantagem daquele que não tem - ou que precisa dele. Em muitas circunstâncias, os instrumentos são considerados semelhantes aos de bancos tradicionais justamente por que nem todos os produtos e serviços existentes num banco comum contêm elementos especulativos. Por outro lado, num banco islâmico não existem muitos produtos do mercado financeiro tradicional como, por exemplo, os derivativos. No fundo, o que um banco islâmico faz pode ser comparado ao comércio. Para todo título emitido existe um produto tangível por trás, um lastro. Isso porque tudo o que você quiser comprar ou vender é saudável dentro do islamismo.

EN - Mas a cobrança de juros é proibida, certo?
Ângela -
Diferentemente do catolicismo, em que o rico nunca vai para o céu, no islamismo, o dinheiro deve ser usado para fazer a economia crescer. Não há nada de errado em ganhar dinheiro, desde que sua atividade agregue algum tipo de valor. A única proibição é a de que dinheiro não pode gerar mais dinheiro. E assim, fica proibida a cobrança ou o recebimento de juros. No Islã, a crença é de que o dinheiro existe para circular. Ele precisa ser utilizado, posto para girar para que não seja consumido pelo zakah, que é uma espécie de imposto de renda. Não há nada de errado com o lucro, tampouco. Imagine que uma pessoa quer comprar um carro, mas não tem dinheiro. Você pode comprá-lo e revendê-lo para ela a prazo, cobrando um prêmio por isso. Esse tipo de transação é perfeitamente aceita e considerada justa. O que não se pode fazer é especular.

EN - Os produtos e serviços financeiros islâmicos passam por um processo de aprovação específico?
Ângela -
Sim, eles são avaliados por um conselho de estudiosos da lei islâmica, a sharia. Por isso esses órgãos são chamados de sharia boards. E é nos sharia boards que reside uma das grandes dificuldades da banca islâmica hoje, que é a carência de padronização. E por que isso? Porque muitos bancos têm seus conselhos formados por estudiosos de escolas legais diferentes. Existem cinco escolas principais: hanafitas, malequitas, chafeitas, hambanitas e jafaritas. Cada uma delas tem entendimentos diferentes a respeito de diversas questões. Conseqüentemente, o que um determinado estudioso considera compatível com a lei islâmica pode ser tido como inadequado por outro.

EN - Em que países as finanças islâmicas estão mais disseminadas?
Ângela -
Muito embora tenham florescido na região do Golfo, em países como Arábia Saudita e Bahrain, a Malásia é um centro de desenvolvimento de produtos muito importante. O primeiro sukuk (título islâmico formatado à semelhança de um título de dívida tradicional, também conhecido como bond), por exemplo, nasceu lá, como um produto para o mercado local. Em países onde a comunidade muçulmana é relevante, a banca islâmica também tem uma presença forte, como no Reino Unido, por exemplo.

EN - Algumas estatísticas, como a apresentada pelo segundo maior banco islâmico do mundo (a Kuwait Financia Bose) revela que 40% de seus clientes na Malásia não são seguidores da fé islâmica. Que atrativos os não-muçulmanos vêem nas finanças islâmicas?
Ângela -
Os investidores de bancos convencionais se sentem atraídos pelas finanças islâmicas por que as enxergam como uma forma mais ética de fazer banco. Existe uma percepção de que há uma preocupação maior com o cliente, um cuidado, visto que a estrutura de sociedade torna o banco um devedor solidário do cliente. Eles partilham os resultados da transação, tanto no ganho quanto nas perdas. É um modelo mais ético, acho que a palavra é mesmo essa. Além disso, o islamismo é a religião que mais cresce no mundo. É natural, portanto, que haja um interesse crescente em entender e seguir os preceitos dessa religião.

EN - O que acontece com o cliente de um banco islâmico que deixa de pagar a prestação de um financiamento, por exemplo?
Ângela -
Normalmente, não se cobra nenhuma taxa. Mas as condições variam de uma instituição para outra. De toda maneira, as condições são sempre detalhadamente negociadas no momento da celebração do contrato. Então, se o banco decidir cobrar uma taxa de processamento da cobrança, por exemplo, sua incidência e seu valor terão sido negociados previamente. Mas isso é muito raro. De modo geral, o banco corre o risco de inadimplência. É esperado dele, aliás, que corra esse risco. É justamente por isso que se percebe que o trabalho de financiamento que ele faz agrega algum tipo de valor.

EN - E como funciona o processo de avaliação de crédito de um cliente?
Ângela -
É semelhante ao de um banco tradicional, mas um pouco mais complexo. A avaliação do objeto do contrato, do projeto que se quer desenvolver com os recursos que se toma do banco é realizada de maneira muito mais aprofundada. Isso porque mais do que um cliente, quem trabalha com um banco islâmico acaba se tornando sócio dele.

EN - Existem também restrições a determinadas atividades, certo?
Ângela -
Sim. Indústrias como as de carne de porco e bebida alcoólica são proibidas. Então, um banco islâmico jamais financiaria a compra de grãos que fossem destinados à produção de bebida, por exemplo. A produção de armas e a indústria de jogos de azar também ficam de fora. A avaliação que se faz do projeto e da empresa é extensa. O financiamento a um hotel é perfeitamente possível. Mas se um cassino fizer parte do complexo, o negócio é inviabilizado. Ao fazer a avaliação é preciso ir bem fundo para entender se de alguma forma - direta ou indireta - esses recursos serão utilizados para financiar uma atividade que não seja permitida pela sharia.

EN - E se a empresa tiver no seu controle investidores judeus, por exemplo. Será que existe algum tipo de restrição?
Ângela -
Em tese não teria. Agora muito dificilmente uma empresa que tenha judeus no seu controle irá buscar algum tipo de financiamento islâmico. O simples fato de ser judeu para um muçulmano não teria essa restrição. Pode haver algum tipo de resistência em trabalhar em conjunto, mas não há qualquer espécie de restrição explícita. Eu nunca vi isso escrito em lugar nenhum.

EN - Conte-nos um pouco da sua história: como uma brasileira foi parar no mundo das finanças islâmicas?
Ângela -
Uma brasileira cristã, ainda por cima... e sem nenhuma gotinha de sangue árabe. Por isso achei todo esse mundo ainda mais fascinante. Se eu fosse muçulmana, talvez não fosse tão interessante, provavelmente eu já estaria acostumada com o que inicialmente vi de tão diferente. Quando vim trabalhar no ABC Brasil ele ainda se chamava ABC Roma e era controlado por Roberto Marinho. Era um banco brasileiro controlado por um grupo brasileiro. Mas desde 1997, quando o capital foi adquirido pelo Arab Banking Corporation, tomei contato com a existência dos títulos de financiamento ao comércio exterior, os murabahas. Consultei um colega que trabalhava na sede do ABC em Bahrain e ele teve o maior prazer em me explicar tudo.

EN - E você enfrentou algum tipo de dificuldade por ser mulher?
Ângela -
Por desconhecimento, no início, achei que poderia encontrar algum tipo de resistência, por ser mulher. Quebrei a cara. Acabei fazendo amigos fantásticos. Costumo dizer que o Oriente Médio é o lugar em que tenho mais facilidade de montar minha agenda. As pessoas chegam a desmarcar viagens para nos receber. Nunca tive de enfrentar nenhum tipo de situação complicada ou onde não fosse recebida de braços abertos. A primeira vez que visitei bancos islâmicos no Oriente Médio em 1997 cheguei até mesmo a visitar bancos islâmicos na Arábia Saudita, que é um país extremamente fechado. Precisei de uma autorização especial para visitar o banco, onde só entravam homens. Lá fiz a minha apresentação e tenho um ótimo relacionamento com eles. Outra coisa interessante é que nunca ninguém tentou me "catequizar", me convencer a mudar de religião. E isso eu acho muito fascinante. No começo até me perguntavam se eu era muçulmana e eu explicava que não e que não via razão para me converter já que meu marido e meus filhos são cristãos. Mesmo assim todos me respeitam muito como estudiosa e os executivos do banco têm grande orgulho do fato de eu ter escrito um livro sobre o tema. Eu costumo dizer que foi mais difícil a minha trajetória como mulher dentro da indústria financeira brasileira do que no âmbito dos bancos islâmicos, dentro do ABC.

EN - Você coordenou captações de recursos usando murabahas no início da década. O que vem a seguir para o Brasil no mercado de finanças islâmicas?
Ângela -
Estamos trabalhando numa operação grande, de empréstimo sindicalizado, que envolve vários bancos e sobre a qual infelizmente não posso dar maiores detalhes. A previsão é de que tudo esteja aprovado e pronto para ser divulgado até o final do ano. Mas, de toda maneira, acho que estamos num momento muito interessante. Os países emergentes e os investimentos alternativos estão em alta. Digo que aqui no ABC estamos no melhor de dois mundos. Somos um banco com capital majoritariamente árabe que atua num mercado aquecido para investimentos como o Brasil, que tem economia grande, diversifica e produz muito alimento num período em que o mundo está carente de alimento... Temos presença em três países produtores de petróleo, onde a riqueza vem crescendo à medida que os preços da commodity sobem. Então é muito natural que haja um interesse mútuo e cada vez maior em intensificar os negócios e, com isso, virão também as operações financeiras nos moldes islâmicos.


Fonte: Época Negócios