por Camila Hessel
Imagine um financiamento imobiliário em que as parcelas podem diminuir caso o imóvel se desvalorize. Ou um empréstimo bancário sem a cobrança de juros. Bom demais para ser verdade? Não para os clientes dos bancos islâmicos, que oferecem produtos e serviços compatíveis com a sharia, a lei religiosa que orienta não apenas os preceitos da fé, mas também o dia-a-dia (e as finanças) dos muçulmanos. Diz a sharia que dinheiro não pode gerar dinheiro e, portanto, estão proibidos a cobrança e o recebimento de juros. Pelas regras, "o dinheiro só existe para promover o desenvolvimento do mundo". Tradução: todo e qualquer recurso de um seguidor do Alcorão deve ser destinado a investimentos produtivos. Assim, o valor de qualquer produto financeiro deve refletir o de um bem tangível estabelecido como lastro. Se o preço de um imóvel hipotecado cai, por exemplo, o valor da hipoteca (ijara) seguirá na mesma direção. A relação entre banco e cliente é semelhante à de uma sociedade, em que lucro e prejuízo são compartilhados.
Mas as proibições não param por aí. Nenhum investimento pode ser direcionado a atividades vistas como pecado (haram). São condenadas pela sharia a fabricação e a comercialização de bebidas alcoólicas, carne de porco e armas. Jogos de azar, pornografia e todos os ramos da indústria do entretenimento, como o cinema e a televisão, também são atividades pecaminosas. É vetada ainda qualquer forma de especulação. "As finanças islâmicas são muito mais do que uma modalidade onde os juros são proibidos", afirma Angela Martins, diretora da área internacional do banco ABC Brasil. Apesar de ter capital árabe e uma subsidiária islâmica no Bahrein, o ABC é um banco comercial comum. Angela trabalha na instituição há 11 anos, interessou-se pelo assunto e o elegeu como tema de sua tese de mestrado, depois transformada no livro A Banca Islâmica (editora Qualitymark).
"A essência da banca islâmica é evitar que qualquer das partes envolvidas numa transação financeira leve vantagem", diz Angela. Por esse motivo, os bancos islâmicos estão sendo cada vez mais procurados por clientes que não seguem a religião de Maomé, especialmente no Reino Unido e em Dubai, onde a presença de grandes comunidades muçulmanas estimulou a oferta desse tipo de serviço. Nesses países, os clientes são atendidos tanto por bancos árabes quanto por ocidentais que seguem a sharia. Instituições como HSBC, Citibank, Deutsche Bank, Lloyds, Barclays e Merrill Lynch se lançaram nesse mercado em busca de um pedaço da riqueza muçulmana, turbinada, nos últimos anos, pela alta nos preços do petróleo. No começo, as iniciativas desses bancos eram dirigidas ao segmento de títulos emitidos por empresas e pelo governo para financiar grandes empreendimentos.
Chamados de sukuk, plural da palavra em árabe antigo utilizada para designar os cheques, esses papéis foram criados na década de 70, à semelhança dos títulos de dívida tradicionais, os bonds. Por todos os impedimentos envolvidos em seu desenho, os sukuk eram vistos como aberração fora do mundo muçulmano. Mas a explosão imobiliária em Dubai mostrou aos executivos de bancos europeus e americanos que eles eram a chave para o cofre de boa parte das fortunas do Oriente Médio. Isso porque grandes hotéis e parte da infra-estrutura portuária do emirado árabe foram financiados com sukuk e deram ótimos retornos aos seus investidores.Há uma outra característica nos títulos islâmicos que chamou a atenção dos ocidentais: eles não são outorgados a empresas que tenham dívidas de mais de um terço de seu valor de mercado (medido pelo preço das ações ou pelo total dos ativos, quando a empresa não é de capital aberto). Quando se deram conta de que essa restrição havia livrado investidores fiéis ao islã dos prejuízos com a bolha da internet, os analistas financeiros se convenceram de que valia a pena tirar esse mercado das sombras. De acordo com a agência de classificação de risco Standard & Poors, os sukuk já movimentaram US$ 500 bilhões e devem superar US$ 1 trilhão até o final da década. O volume de recursos captados com sukuk cresceu 74%, de 2005 para 2006, e 114% em 2007. A participação dos bancos internacionais saltou junto. Se, em 2006, apenas HSBC e Merrill Lynch figuravam entre os dez maiores financiadores das operações, em 2007, Citibank, Deutsche Bank, Standard Chartered e Barclays entraram para a lista.
O grande impulso veio em 2001, como conseqüência dos ataques de 11 de setembro. O preconceito generalizado contra os muçulmanos se refletiu no mercado financeiro e nos investimentos realizados por eles. Contas correntes foram congeladas, sob suspeita de financiamento de células terroristas. Bancos e fundos de investimento de capital árabe foram processados pelas famílias das vítimas do ataque às Torres Gêmeas, em Nova York, que os acusaram de financiar a Al-Qaeda. Estimativas levantadas por grandes bancos de investimento mostram que investidores árabes retiraram mais de US$ 800 bilhões de bancos americanos e europeus, entre setembro de 2001 e setembro de 2002.
SEM ESPECULAÇÃORegras que os bancos devem observar para operar de acordo com a sharia
JUROS>>> Há 1,4 mil anos, o profeta Maomé determinou que dinheiro não pode gerar mais dinheiro. Todos os recursos devem ser canalizados para investimentos produtivos. Qualquer lucro obtido de outra maneira é considerado usura. Por isso, um seguidor do islã não pode pagar ou receber juros.
ESPECULAÇÃO>>> Toda transação deve ser lastreada por um bem ou serviço que já exista e cujo valor seja determinado na assinatura do contrato, eliminando o risco de especulação (gharar). Os recursos investidos por um cliente são destinados à compra e venda de commodities. O lucro é compartilhado entre o cliente e o banco.
ENDIVIDAMENTO>>> Companhias com endividamento superior a um terço de seu valor não podem se beneficiar dos serviços de um banco islâmico.
ATIVIDADES IMPRÓPRIAS>>> Bancos não podem investir em atividades condenadas pela sharia, como a produção e comercialização de bebidas, tabaco, armas e jogos, além de cinema e TV.
Para minimizar o preconceito e evitar que os bancos islâmicos sejam efetivamente utilizados para financiar atividades terroristas, uma série de medidas de supervisão foi posta em curso. Sediado em Londres, o Institute of Islamic Banking and Insurance coordena a discussão de iniciativas de monitoramento de dois aspectos principais: as remessas de dinheiro feitas por muçulmanos a seus países de origem e as doações a instituições de caridade islâmicas. O fluxo de recursos também é analisado segundo uma metodologia desenvolvida em 2003 pelo FMI, pelo Banco Mundial e pela Financial Action Task Force, força-tarefa mundial que previne a lavagem de dinheiro.
No Brasil, o banco ABC foi o único a captar recursos com produtos financeiros islâmicos. Angela Martins e um colega da sede do banco no Bahrein montaram o primeiro título de financiamento ao comércio exterior (murabaha), em 1997. O ABC fez vários deles no início da década, captando quantias entre US$ 10 milhões e US$ 15 milhões. Os contratos foram estruturados tendo como base operações de exportação de empresas brasileiras. "Hoje estamos costurando uma nova operação, de empréstimo sindicalizado", diz Angela. Há vários bancos envolvidos e a captação poderá superar US$ 100 milhões.
A construtora brasileira WTorre utilizou murabahas para financiar seu primeiro projeto nos Emirados Árabes. Trata-se da Desert Rose, um empreendimento com condomínios residenciais, torres de escritórios e centros comerciais em construção na cidade de Sharjah, vizinha a Dubai. O sócio local da WTorre, Najieb Khoory, afirma que a escolha foi motivada pela estrutura de sociedade que existe entre o cliente e o banco. "O financiamento islâmico garante uma proteção adicional", diz Khoory. "Como as condições são todas preestabelecidas e o risco compartilhado, há uma clara vantagem financeira." Khoory não revela o total captado até o momento, mas o valor do projeto é estimado em US$ 1 bilhão.
Em busca da simpatia de indivíduos com fortuna estimada em US$ 1,5 trilhão (segundo relatório da Capgemini e do Merrill Lynch), o HSBC foi um dos primeiros bancos internacionais a se lançarem nesse mercado, com a criação, em 1998, do HSBC Amanah. "No começo, nosso único foco eram os produtos corporativos", disse a Época NEGÓCIOS, de Dubai, Nabeel Shoaib, presidente regional do HSBC. "Hoje também trabalhamos com produtos de varejo", diz Shoaib. O HSBC Amanah tem sede em Dubai e agências na Malásia, Arábia Saudita, em Cingapura e no Reino Unido.
Nenhuma tarifa é cobrada pelo gerenciamento de uma conta corrente, por exemplo. Os fundos de investimento (mudharaba) estabelecem antecipadamente como e em que produtos os recursos do cliente serão investidos. O banco se encarrega de comprar e, posteriormente, de vender esses produtos. O lucro obtido com a transação é dividido com o cliente, numa proporção determinada no fechamento do contrato. Para uso de cartão de crédito, o correntista paga uma taxa mensal pelo processamento dos pagamentos. Os seguros (takaful) prevêem a garantia conjunta do bem segurado. Assim, cliente e banco compartilham tanto os lucros quanto as perdas da operação. Para que possa ser comercializado pelo banco, um produto precisa ser aprovado por um conselho de estudiosos da sharia, o sharia board. Religiosos especializados em finanças avaliam cada detalhe para certificar aos investidores que nenhuma regra foi quebrada. Os "selos de aprovação" são chamados fatwa. Só assim o cliente do banco islâmico pode ter certeza de que seu dinheiro não será investido em algo proibido.
Especialistas como Hassan são raros. Além do conhecimento religioso, precisam ter domínio de finanças e fluência em inglês. O forte crescimento do mercado nos últimos cinco anos e a chegada dos bancos internacionais fazem com que os poucos estudiosos participem de um grande número de conselhos. Os mais experientes chegam a receber até US$ 100 mil por produto aprovado. Hassan diz que o importante é saber que os membros do conselho não têm nenhum tipo de influência no dia-a-dia da instituição. "Nossa única preocupação é assegurar que os produtos sejam compatíveis com a sharia." O maior banco islâmico do mundo é o Al Rajhi Bank, da Arábia Saudita, seguido pelo Kuwait Finance House, que atua no Oriente Médio, na Turquia e na Malásia. Dominic Selwood, que coordena a área de finanças islâmicas no Deutsche Bank, disse ao Financial Times que os produtos islâmicos são a principal fonte de inovação hoje. "Os bancos ocidentais irão investir para ter participação num mercado que já movimenta 1% dos ativos bancários do mundo."
Fonte: Época Negócios