Riad Younes chegou ao país com 16 anos, sem documentos, fugido da guerra civil do Líbano. Sentiu-se acolhido pelos brasileiros e se transformou em um dos maiores especialistas em câncer de pulmão, ajudando a projetar internacionalmente o Hospital do Câncer, em São Paulo. É ainda pesquisador, professor universitário e jornalista bissexto. Em dezembro de 2003, integrou, "emocionado", a comitiva brasileira que acompanhou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na viagem aos países árabes.
Sergio Tomisaki
Riad Younes: 'Me sentia atraído pela capacidade do cirurgião de resolver os problemas com as mãos'
Cristina Iori
São Paulo - A guerra civil expulsou do Líbano a família Younes, de religião muçulmana, que chegou refugiada a São Paulo em 1976 - o casal Naim e Wajiha, e os dois filhos, Riad e Khaled. O filho mais velho ingressou, dois anos mais tarde, aos 18 anos, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Hoje, aos 44 anos, naturalizado brasileiro há 11, o cirurgião Riad Younes é um dos maiores especialistas do país em câncer de pulmão, e um de seus trabalhos já foi incluído entre os dez melhores da década publicados no mundo, segundo o American College of Chest Physicians. Que sorte para o Brasil ter acolhido a família Younes.
"Sorte a minha ter chegado aqui", retruca o médico de altura média, magro, gestos comedidos, que tem colecionado façanhas abaixo do Equador. A primeira façanha foi driblar as dificuldades do idioma e as circunstâncias que enfrentam todos os que não têm outra saída a não ser abandonar seu passado sem deixar rastros.
Riad Younes chegou ao Brasil sem documentos e não poderia estudar sem comprovação de escolaridade. No entanto, graças à Lei dos Refugiados de Guerra, em vigor nos anos 1970 por causa dos angolanos que para cá vieram, o garoto libanês pôde estudar em um colégio estadual de São Paulo, após realizar uma prova. Do colégio público para a Faculdade de Medicina da USP foi um salto gigantesco e demonstra que a família Younes não demorou a sentir-se em casa no novo país. "Jamais me senti discriminado aqui, nem mesmo quando não podia falar o idioma", diz ele.
Atualmente, Riad Younes conjuga sua intensa atividade como cirurgião - é chefe do Departamento de Cirurgia Torácica do Hospital do Câncer e membro do conselho diretor do Hospital Sírio-Libanês - com a pesquisa básica, produzida em laboratórios que coordena como professor titular na Faculdade de Medicina da USP e no Centro de Pesquisas Oncológicas da Universidade Paulista (Unip). Também atua como jornalista bissexto - assina a coluna e o encarte de saúde da revista "Carta Capital" e edita a revista "Câncer Hoje".
Palestras em todo o mundo
A paixão pela pesquisa Younes traz dos tempos de faculdade, no final dos anos 1970. Quando cursava o primeiro ano, começou a trabalhar com o professor Maurício Rocha e Silva no laboratório que estudava opções de tratamento para choques hemorrágicos graves. "Tem gente que coleciona coisas, gosta de viajar, fazer compras. Eu gostava de ficar no laboratório", ele conta. Passou os cinco anos de faculdade sem férias, sem folgas, sem lazer, imerso em seus estudos. O resultado veio logo. Antes mesmo de receber o diploma de médico, Riad Younes já havia realizado palestras em 17 países.
Tornou-se mundialmente conhecido o resultado desta pesquisa de Younes, uma solução superconcentrada de soro, onde 250 ml equivalem a 3 litros de soro comum, para utilização em situações emergenciais, quando substitui a anterior com vantagens de manipulação, transporte e rapidez de atendimento. Até soldados norte-americanos em frente de batalha carregam em suas mochilas embalagens com o soro hiperconcentrado, para auto-aplicação, caso sejam feridos.
O sucesso em laboratório poderia ter indicado ao jovem Younes um caminho seguro. No entanto, não era sua intenção ser cientista, e sim médico. "Para mim, a pesquisa em laboratório era um hobby".
O desafio da cirurgia
Durante o período de internato, quando os estudantes de quinto e sexto anos da Faculdade de Medicina da USP começam a atuar no Hospital das Clínicas, ele decidiu enfrentar um novo desafio: ser cirurgião. "Me sentia atraído pelos doentes mais graves, e pela capacidade que o cirurgião adquire de resolver os problemas com as mãos".
Com a intenção de aperfeiçoar-se em cirurgias de câncer de pulmão, candidatou-se e ingressou como fellow do Departamento de Cirurgia do Memorial Sloan-Kettering de Nova York, onde permaneceu por dois anos, de 1988 a 1990.
Ao voltar, em 1990, foi convidado a ser o chefe do Departamento de Cirurgia Torácica do Hospital do Câncer, que naquele momento passava por uma total reformulação. "Adotei no Hospital do Câncer o enfoque multidisciplinar no atendimento ao paciente. As decisões passaram a ser tomadas em conjunto, por vários especialistas. Antes, um cirurgião poderia orientar o tratamento por quimioterapia, o que é um absurdo", diz.
Referência internacional
O trabalho da equipe de Riad Younes no Hospital do Câncer tornou-se referência no Brasil e no mundo. Em 1999, foi publicado na revista internacional Chest o estudo que traz a descrição da rotina e estratégia de seguimento dos doentes de câncer de pulmão após cirurgia no Hospital do Câncer. Este texto foi selecionado pelo American College of Chest Physician entre os dez melhores trabalhos da década sobre câncer de pulmão, além de ser recomendado como leitura para todos os especialistas da área.
Ao completar dez anos à frente do Departamento de Cirurgia Torácica, Younes coletou e reuniu em um livro dados completos de todos os 840 casos tratados totalmente no Hospital do Câncer durante a década. O livro "Câncer de Pulmão: Prevenção, Diagnóstico e Tratamento - 1990/2000" é referência para profissionais da área, e demonstra a ânsia de Riad Younes em acumular experiência e fixar procedimentos na sua especialidade.
Tratar um paciente com câncer de pulmão é por definição um caso difícil. "94% são fumantes. Muitos chegam a mim quando já estão com os pulmões queimados e destruídos. E cabe ao cirurgião tentar preservar ao máximo partes do órgão".
Como cirurgião, Younes define a si mesmo como "tranqüilo", ou seja, não é dado a explosões de raiva ou autoritarismo quando está em sala de cirurgia. Opera quase que diariamente, e cada cirurgia pode durar até quatro horas. Uma das coisas que ele mais aprecia é tomar decisões rápidas quando o paciente está na mesa de operação, em situações que causariam calafrios ao mais frio dos mortais que não estivesse de sobreaviso. "Quanto mais racional estiver, melhor", diz.
"Fiquei arrasado"
Mesmo assim, com uma década de experiência à frente do Hospital do Câncer e dois anos "que equivalem a 20" no Memorial Sloan- Kettering de Nova York, Younes se depara com coisas que o deixam arrasado. Certa vez, considerou que seria simples uma cirurgia para extirpar um tumor pequeno, "minúsculo, segundo todos os exames", de um homem jovem, de 38 anos. Durante a cirurgia, veio a surpresa. Por todo o pulmão do paciente havia pequenos nódulos, imperceptíveis aos exames de imagem comumente feitos, e que indicavam a presença maciça da doença. "Não havia o que fazer. Nem cheguei a operá-lo", conta Younes. "Contar a ele foi muito triste".
No entanto, há casos em que a surpresa vem acompanhada da vitória. "Fui chamado às pressas a uma cirurgia que um assistente meu estava realizando, caso de um tumor de pulmão que na verdade já invadira o coração, outra situação não detectável em exames pré-cirúrgicos. Dessa vez, no entanto, conseguimos extirpar completamente o tumor sem prejuízo para o paciente. Foi gratificante", diz.
Tudo isso e a pressão cotidiana de atender e dar informações a pacientes que estão diante da morte tornam os dias de Riad Younes estafantes. Ao chegar em casa, precisa de meia hora de silêncio, antes de poder voltar tranqüilamente ao convívio da mulher Nadia, e das filhas, Yasmin, 10, e Nassrin, 7. Para a família, a presença do cirurgião também exige adaptações. Em seu consultório, há um desenho feito pela filha mais velha, que em vez de princesas, casinhas ou animais, retrata a figura de uma pessoa com o peito aberto, e o desenho de cada órgão interno, sua indicação e localização exata.
Trata-se de uma família árabe que segue os preceitos gerais da religião muçulmana. Younes não bebe e não come carne de porco. Pratica o jejum no período do Ramadã, e já fez uma peregrinação à Meca. Também não fuma, mas este hábito ele não refuta apenas por fé ao islamismo.
De volta ao Líbano, com o Lula
Este homem que enfrenta graves dilemas com seus pacientes, e já esteve enclausurado em uma pequena casa no interior do Líbano, durante um combate entre facções rivais, também é capaz de manter o bom humor. Em 1998, por sugestão do jornalista Mino Carta, responsável editorial pela revista "Carta Capital", escreveu um texto sobre um passeio que fez a Brasília, durante uma convenção partidária.
"Tinha a curiosidade de saber o que os políticos fazem. Ficaram sabendo e me convidaram a comparecer a um encontro político com crachá de jornalista. Fui, e me diverti à beça", conta Younes. O texto, "Sentiram minha falta em Brasília", o primeiro de uma série que se mantém até hoje, narra sua perplexidade diante do ambiente político. O título é uma brincadeira. Um político o cumprimentou como se o conhecesse e estranhou o fato de ele "andar sumido".
Em dezembro de 2003, como representante na área de saúde, Riad Younes integrou a comitiva brasileira que acompanhou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em viagem aos países árabes. Um momento histórico, já que se tratou da primeira visita de um chefe de estado brasileiro desde Dom Pedro II. Para Younes, além disso, foi "emocionante, indescritível".
"Me senti como se estivesse fazendo o caminho inverso e participando de algo bom para os dois países", declarou. Ele disse ter ficado feliz com a boa receptividade das autoridades ao presidente Lula e aos brasileiros.
O médico participou de eventos na Síria e Líbano, e nestes dois países pôde entrar em contato também com representantes do Egito, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita.
Segundo Younes, há inúmeras possibilidades de intercâmbio com os países árabes na área de saúde. Uma das áreas é o ensino médico e o treinamento de paramédicos, além de intercâmbio acadêmico. A transferência de tecnologia de ponta e know-how, como por exemplo em transplantes, em que o Brasil tem destaque internacional, é outra possibilidade.
Estuda-se ainda o encaminhamento de pacientes para tratamento em nossos centros de excelência, possibilidade que exporia aos países árabes a tecnologia de nossos aparelhos e procedimentos hospitalares. Há também a semelhança dos problemas de saúde inerentes a países em desenvolvimento, como aqueles decorrentes de falta de saneamento básico. O Brasil tem ainda condições de repassar a própria experiência, bem-sucedida, de campanhas de vacinação em massa.
O médico de origem árabe Riad Naim Younes é assim: preocupa-se com seus pacientes, preocupa-se com o Brasil. Por sorte ou por destino, mantém-se afastado de outras tantas batalhas e disputas, como as expostas no texto sobre Brasília. Prefere a guerra diária contra o câncer, para nosso bem-estar e saúde.
Fonte: ANBA