Eu não creio que um confronto de civilizações seja inevitável, mas eu acho que existem muitas pessoas no mundo que querem um confronto de civilizações. Pelos últimos 50 anos o ocidente em geral e os Estados Unidos em particular, tem se envolvido em uma abordagem fundamentalmente cínica, ilusória e incorreta em seu relacionamento com países em todo o mundo islâmico.
Essa abordagem tem sido muito simples. Nós apoiamos qualquer ditador independente de quão cruel ele seja, desde que ele prometesse que não era um comunista e depois, quando a ameaça do Comunismo pareceu diminuir, que ele manteria sob controle o potencial radicalismo surgindo de seu povo. Isso foi feito em nome de um ideal conhecido como estabilidade, para evitar uma revolução islâmica nos moldes da que ocorreu no Irã. Os Estados Unidos e a maioria do resto do Ocidente falhou em viver os valores da democracia, devido ao seu apoio a regimes autocráticos, mas o Islam não tem disputas com a democracia como um fenômeno se apenas a democracia for propriamente expressada.
Existem pessoas no mundo islâmico que tem adotado a posição de que a democracia em sua essência é incompatível com o Islam. Um argumento padrão é o seguinte: O Islam se apóia na soberania de Deus e a democracia se apóia na soberania do povo – o que pode ser mais incompatível que isso? Parece um argumento poderoso.
É verdade que no Islam a soberania absoluta está em Deus, mas aplicar a lei requer esforço humano. O ato de fiqh, a interpretação e aplicação da lei divina para casos particulares, tem que ser feito pelos humanos. Se tivéssemos uma revelação contínua poderia ser diferente, mas não temos. O processo de moldar o governo é a responsabilidade do ser humano tentando ser fiel e responsável aos valores de suas tradições e crenças.
Do lado da democracia, a afirmação de que na democracia a soberania do povo é fundamental é um mal-entendido do que nós pretendemos por democracia hoje. Ninguém em uma democracia constitucional liberal crê que todos os nossos direitos e liberdades fundamentais são determinados pelo povo, porque se fossem, toda vez que uma maioria quisesse prejudicar uma minoria não haveria nada errado com isso. Mas nós acreditamos que temos certos direitos fundamentais que existem independentemente do que a maioria diz. De onde eles vêm? Algumas pessoas acham que eles vem da natureza, outras acreditam que vem de Deus.
De fato, os autores da Declaração de Independência dos Estados Unidos disseram explicitamente que eles vieram de Deus. Isso significa que as pessoas fazem leis enquanto elas forem compatíveis com alguns valores fundamentais que transcendem o processo de decisão humano. Existem sábios no mundo islâmico que estão dizendo que uma vez propriamente compreendida a democracia não existe razão para concluir que ela demanda uma noção de soberania que é incompatível com a soberania absoluta de Deus.
A crença absoluta de muitos fanáticos dentro do ocidente secular e tradições ocidentais religiosas é de que devemos todos nos tornar ocidentais. O que eu considero difícil sobre essa tese é um incrível ato de negação no qual é assumido que algo está inerentemente errado com os muçulmanos.
Existem 1.2 bilhões de pessoas nesse planeta que são muçulmanas, com níveis variados de educação, mas elas acreditam que o Islam é uma revelação de Deus. O mujtahid sempre reconhece que ele não está falando em nome de Deus e que a grande maioria das leis na tradição islâmica não são vistas como teocráticas mas como leis que são derivadas dos esforços de seres humanos tentando compreender a vontade divina. Então é importante para os muçulmanos reconhecerem que ao invés de olharem para a lei islâmica como um sistema teocrático monolítico, ela deve ser reconhecida como princípios divinos que nos foram dados.
Nós diferiremos em particularidades, mas no geral os princípios que regem a lei constitucional ocidental são os mesmos princípios legais atuando na lei islâmica. O que eu acho muito desolador é que a maioria dos nossos juristas muçulmanos são quase que totalmente ignorantes das teorias e sistemas legais ocidentais. O Islam é um sistema legal que pode absorver muito do que nós temos de caro no ocidente em termos de nossos ideiais democráticos.
Se por democracia entendemos uma cidadania na qual os seres humanos participam em alcançar a qualidade de vida que desejam para si mesmos, seus filhos e para os outros, então eu diria que a democracia é absolutamente compatível com a tradição islâmica.
Um tirano não adere a lei mas segue seus desejos pessoais e essa tem sido a norma por muito tempo nos países muçulmanos, e existem muitas razões para isso. Esse fato tem levado a condições sociais no mundo muçulmano que são ao mesmo tempo degradantes e debilitantes. Elas causam uma enervação na vontade e no espírito do povo.
Quando perguntarmos “o que deu errado”, devemos reconhecer que os muçulmanos provaram estar entre as mentes mais produtivas de nossa atual civilização, mantendo posições destacadas em corporações, na medicina e na engenharia. Nós tivemos ganhadores do Prêmio Nobel e contribuímos para fazer desse mundo um lugar melhor quando o ar da liberdade esteve lá para nutri-lo, mas frequentemente o espírito foi perdido.
(Trecho de um diálogo entre Noah Feldman, professor na Universidade de Nova York e autor do livro “After Jihad: America and the Struggle for Islamic Democracy” e sheikh Hamza Yusuf. Sheikh Hamza Yusuf se converteu ao Islam aos 17 anos (hoje tem 43), se formou em Teologia Islâmica nos Emirados Árabes e viajou pelo Oriente Médio para complementar seus estudos, sendo orientado pelos melhores sheikhs da atualidade. É graduado em 2 cursos universitários por universidades americanas.)
Editado de matéria veiculada na edição de Dezembro/2003 da revista QNews