Angela Martins, diretora do banco ABC Brasil, escreveu um livro sobre a prática bancária islâmica, norteada pelos princípios do Alcorão, e que leva em conta a ética e a responsabilidade social. Não existem juros, mas os lucros são bem-vindos. Como se trata de uma atividade crescente, Angela acredita que os brasileiros interessados em fazer negócios com os árabes devem aprender mais sobre o sistema.
Alexandre Rocha
São Paulo - Você sabe o que é um banco islâmico? Bom, do ponto de vista financeiro são instituições que movimentam todos os anos cerca de US$ 200 bilhões ao redor do mundo. Mas, diferentemente do sistema financeiro tradicional, o trabalho dessas entidades é norteado pelos princípios do Alcorão, que é o livro sagrado para os muçulmanos, e prega a ética e a responsabilidade social. Para mostrar aos brasileiros a prática bancária islâmica e gerar oportunidades de negócios, a diretora do Banco ABC Brasil, Angela Martins, escreveu "A Banca Islâmica", o primeiro livro em português sobre o assunto, que será lançado na próxima semana.
"(O Islamismo) é a religião que mais cresce no mundo. Então, a banca islâmica é uma coisa importante para as pessoas prestarem um pouco mais de atenção, principalmente num país que diz ter interesse em aumentar suas relações com os países árabes, que em sua maioria são muçulmanos", disse Angela, formada em administração de empresas, com especialização em finanças, e que há oito anos trabalha no ABC Brasil, controlado pelo banco árabe Arab Banking Corporation.
Segundo ela, a usura e a especulação são práticas vetadas no mundo financeiro islâmico, não existem juros e a palavra de ordem é "parceria". "Quando o banco islâmico compra açúcar à vista do fornecedor brasileiro e vende a prazo para o importador muçulmano, ele corre o risco junto com o importador", disse. Mas isso não quer dizer que instituição não pode ter lucro, muito pelo contrário, ela cobra pelos serviços oferecidos.
Além disso, essas instituições, de acordo com ela, podem ser fontes de recursos para investimentos no Brasil, pois esses bancos aplicam muito no setor imobiliário, mesmo fora do Oriente Médio. "Isso é algo que o Brasil poderia tentar", afirmou.
Para ilustrar a importância da banca islâmica, ela disse que a Universidade de Harvard, nos EUA, criou uma cadeira específica sobre o assunto. Mas o Brasil continua "apartado da questão". Leia abaixo os principais trechos da entrevista que ela concedeu à ANBA:
ANBA - Por que a senhora resolveu escrever o livro?
Angela Martins - O ABC (internacional) sempre teve uma atuação importante nessa área e nossos colegas lá do Bahrein (sede do banco) começaram a oferecer produtos. Nós aqui não conhecíamos e eu comecei a me aproximar deles para entender melhor. Os bancos da região do Golfo conhecem muito bem o ABC Brasil, nos consideram, fazemos negócios com eles. E eu notei que, por haver um total desconhecimento do que é "islamic banking" no Brasil, muitas vezes isso é um impedimento para essas operações. Então eu achei que seria interessante fazer um livro explicando como funciona o sistema. Na medida em que a gente mostra o produto, pode haver maior interesse, tanto na parte de comércio exterior, porque muitas operações de exportações brasileiras podem ser feitas dessa maneira, como também pensando, no futuro, em oferecer produtos islâmicos para a comunidade muçulmana no Brasil.
A senhora não é de origem árabe, é?
Sou brasileira, descendente de italianos e portugueses, aquela famosa misturinha brasileira, e sou cristã, não sou muçulmana, sou uma estudiosa do assunto. Mas tenho muitos amigos na região. Os bancos mais importantes da região do Golfo, bancos islâmicos como o Dubai Islamic Bank e o Shamil Bank, eu tenho uma relação de amizade com o pessoal de lá. Quer dizer, nós conseguimos aqui no Brasil ter uma relação direta com esses bancos, não apenas com os bancos islâmicos, mas com outros bancos árabes que têm divisões islâmicas e conseguimos ter uma relação muito próxima. Existem outros bancos internacionais que fazem "islamic banking", como o HSBC e o Citibank, só que a relação deles não é assim tão direta quanto a nossa.
Quanto tempo a senhora demorou para escrever?
Olha, o embrião do livro foi a monografia que eu fiz para o meu MBA em 2001, sobre a banca islâmica. Eu aproveitei a base da monografia e transformei o texto em algo mais palatável, mais fácil, porque normalmente um texto de monografia é mais técnico, com muitas referências, então fica mais chato. Eu reescrevi de uma forma mais leve.
O que é a banca islâmica?
Na verdade é um conceito bem mais profundo do que aquela coisa que as pessoas falam: Ah, banco islâmico é apenas um banco que não cobra juros.
Mas não cobra juros?
Não cobra juros, mas o princípio é muito mais profundo do que esse. O que diferencia a banca islâmica da banca convencional é o seguinte: O banco islâmico faz uma parceria com o cliente. Se na banca convencional você quer comprar um carro, seu crédito será avaliado e o banco vai te emprestar um recurso e, se você não tiver condições de pagar, ele toma o carro de volta. No caso da banca islâmica a avaliação é feita de maneira diferente. Ela entende que toda vez que você vai ao banco com alguma necessidade ele tem que entrar no negócio e correr o risco junto com você, como se fosse uma parceria. O que é proibido no islamismo é a usura. O que, se você fizer uma análise mais profunda, também é proibido pelo catolicismo, só que isso já não se utiliza tanto na prática bancária. Não cobra juros, mas pode ter um lucro. Não é proibido ter lucro, o que é proibido é cobrar o juro, o juro sobre juro, o juro em cima de nada. Cobrar por um serviço prestado é legítimo, o que não pode é apenas especular com o dinheiro, não existe o valor do dinheiro no tempo na banca islâmica.
Você compra um carro e embute um valor que será seu lucro. Na prática isso não seria um juro?
É mais uma questão de conceito. Quer dizer, o juro normalmente incide sem que a instituição agregue qualquer tipo de valor. No caso do lucro não. Por exemplo, no caso de uma operação de comércio exterior, quando o banco islâmico compra açúcar à vista do fornecedor brasileiro e vende a prazo para o importador muçulmano, ele vai correr o risco junto com o importador, o risco da mercadoria não estar adequada, como se ele fosse o real importador. Então é justo que ele tenha algum ganho, porque, na verdade, ele está servindo ao importador que só poderia comprar a prazo. E ele sempre vai estar agregando valor de alguma forma. Isso é apenas um detalhe mas, por exemplo, na banca islâmica você não pode negociar dívida, não especula com o valor do dinheiro no tempo, ou seja, tenta-se evitar todos os tipos de especulação.
Mas, na prática, não seria a mesma coisa?
Na prática em uma única visão sim. O que se considera perigoso ou ilegítimo do ponto de vista islâmico é quando você olha para a banca convencional e vê toda a especulação que existe ao redor. Tem toda a especulação com papéis, todas as posições de presente e futuro, todas as operações de mercado que não existem na prática islâmica.
Mas na hora de colocar esse lucro eles também avaliam o risco do cliente?
Claro, é avaliado. Não só o risco do cliente, mas todo o risco da operação. Outra coisa, o banco islâmico também cuida para que o produto comprado esteja de acordo com as leis da Sharia. Por exemplo, ele nunca vai financiar a compra de bebidas alcoólicas ou de carne de porco.
Existe uma limitação para esse lucro?
Não existe uma limitação no sentido de um órgão que delimite isso. Mas a própria prática do mercado faz com que existam limites razoáveis. Dificilmente você vai encontrar um banco islâmico que seja ganancioso, que aja fora do que é considerado razoável. Até porque ele não deixa de ganhar o dinheiro, uma vez que o depositante não vai receber juros por suas aplicações. Quando ele capta recursos e quando ele empresta recursos os parâmetros são os mesmos, então ele consegue fazer nesse lucro um diferencial que o viabiliza.
Vamos supor que o cliente vá ao banco islâmico aplicar dinheiro. Ele vai remunerar com lucro também?
Também. Existem várias formas de aplicar. Você pode tanto guardar seu dinheiro no banco, daí é um recurso não remunerado. Mas se você quer ter uma remuneração, pode participar com o banco dessas operações. Por exemplo, a importação de açúcar. Quando o banco compra em nome do importador que precisa do prazo, ele pode fazer isso junto com esses clientes que querem remuneração.
Eles se tornam sócios na operação então?
Exatamente. A grande diferença é essa. O investidor passa a ser um sócio numa operação e as responsabilidades são muito mais parecidas com as de um sócio do que de um simples investidor.
Quer dizer, se a carga afundar no mar, azar?
É um risco que ele corre solidariamente ao importador.
É possível viabilizar exportações brasileiras por esse sistema?
Já existiram. A Marcopolo já exportou ônibus para a Arábia Saudita e teve a operação financiada por esse sistema. A Petrobras já fez operações de "islamic banking". A possibilidade existe. Por isso que eu acho interessante que as pessoas entendam melhor como funciona porque é um mercado que gira mais de US$ 200 bilhões por ano e, para interagir com ele, você precisa entender como funciona.
É possível atrair investimentos ao Brasil por esse sistema?
Sem dúvida. Muito dos investimentos feitos pelos muçulmanos são aplicados no mercado imobiliário. Hoje na Inglaterra, e mesmo nos Estados Unidos, existem grandes fundos que administram recursos de muçulmanos lastreados em imóveis. Isso é uma coisa que o Brasil poderia tentar. Não é uma coisa simples, é uma coisa de longo prazo, porque, para atrair, teriam de existir projetos muito bem estruturados. Mas eu acho plenamente viável.
Quando esse sistema começou a ser praticado de forma mais institucional?
A banca islâmica começou a ganhar força a partir dos anos 70 e foi se encorpando a partir dos anos 80. Como sistema ele é razoavelmente recente, está em evolução.
Na década de 1970 houve o grande boom do petróleo na região. Pode-se dizer que, além da religião, ele é fruto do petróleo também?
Eu não diria que é fruto do petróleo, tem tudo a ver com a religião. A questão do petróleo é que a região passou, nessa época, a ter um caráter mais independente e, por conta disso, todas as instituições começaram a se estruturar melhor. O petróleo tem importância porque os países da região começam a surgir como países fortes e, com uma liquidez tão grande, passou a fazer sentido ter uma banca que administrasse esses recursos.
As operações de compra e venda seriam as mais interessantes para os empresários brasileiros?
Não só isso, existem produtos islâmicos equivalentes ao leasing e ao pré-financiamento de exportações. Mesmo aí existe o conceito na banca islâmica de que, a princípio, você não pode vender aquilo que ainda não tem, o que é diferente da banca convencional, onde você compra e vende expectativas. Não pode vender um bezerro só porque você tem um touro e uma vaca, é preciso antes ter o bezerrinho nascido para vender. Mas existem formas de pré-financiar estruturadas, de forma que o banco pode ajudar aquela empresa que precisa um capital de giro.
Ele vira sócio da produção?
Exato. Existe toda uma forma de fazer isso para que você possa contar com o financiamento antes da produção da mercadoria.
A senhora acha essencial para quem quer entrar no mundo árabe conhecer um pouco mais esse sistema?
Não sei se a palavra é "essencial". Mas se você está negociando com países islâmicos, ainda que você opte por fazer as suas operações financiadas da forma tradicional, é importante conhecer esta outra alternativa. Existe lá uma banca enorme, com grande potencial de recursos e que pode ser interessante para explorar. Não vai ser a única fonte de recursos, mas ela está crescendo e pode vir a ser essencial e pode ser interessante para alguns importadores específicos.
Pode haver alguma restrição por parte do importador se esse sistema não for adotado?
O mundo todo está se voltando para as questões éticas, morais e isso importa muito para as pessoas mais voltadas para a religião, que têm interesse em ver suas atividades mais próximas dos seus princípios. Por isso eu acredito que, cada vez mais, os muçulmanos vão querer ter suas atividades financeiras dentro dos princípios da sua religião.
É possível dizer que no futuro a maioria das operações nos países árabes será feita dessa maneira?
Não digo a maioria. Mas é a religião que mais cresce no mundo. Então, no mínimo, é uma coisa importante para as pessoas prestarem um pouco mais de atenção. Principalmente num país que diz que tem interesse em aumentar suas relações com os países árabes, que em sua maioria são muçulmanos.
Serviço
A Banca Islâmica
156 páginas
Autora: Angela martins
Editora: Qualitymark
Preço: R$ 30
Lançamento: Dia 6 de agosto a partir das 19 horas
Onde: Livraria Saraiva do Shopping Iguatemi, na Av. Brigadeiro Faria Lima, 2.232, piso Faria Lima, São Paulo (SP)
Fonte: ANBA