Estudiosos detectam construções de origem oriental na letra do compositor brasileiro Tom Jobim, e a comparam a um dos primeiros grandes textos poéticos da literatura árabe, escrito há mais de 1500 anos.
Cristina Iori
São Paulo - Uma das mais belas composições de Tom Jobim, "Águas de Março", com sua letra composta por rápidos e cortantes flashes do cotidiano, remonta às construções de linguagem e pensamento árabe. Esta é a conclusão de artigo publicado por Aida R. Hanania, vice-diretora e professora-titular do Departamento de Línguas Orientais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) e Jean Lauand, professor-titular da Faculdade de Educação da USP.
"...Grande e grandiosa, inquietante, 'Águas de Março' soa aos nossos ouvidos, sempre de novo, como diz sua letra, como 'um mistério profundo'. Parte desse mistério reside, talvez, no fato de a poesia (...) nos arrancar de nossos padrões usuais de pensamento ocidental e nos conduzir às formas de pensamento do Oriente, "lugar" por excelência do mistério (...)", escreveram Aida e Lauand em artigo publicado originalmente no Jornal da Tarde, de São Paulo, em 1991.
Segundo os autores, Tom Jobim lança mão de estruturas semelhantes à linguagem-pensamento árabe em "Águas de Março". Em vez de longos discursos ocidentais, encontramos imagens concretas. Assim, o verso "passarinho na mão, pedra de atiradeira", substitui o modo ocidental que seria usado para narrar o ato de apanhar um passarinho com estilingue. Este e outros versos - como "carro enguiçado, lama, lama"-, consolidam a semelhança da letra da música com o caráter oriental de pensamento, onde se empregam, segundo os autores, frases nominais e não o "é", pois trata-se de forma fraca, descartável, desse verbo.
Escrevem os autores: (...) "a orientalização chega ao extremo quando no final da canção, interpretada por Tom e Elis (Elis com riso mal contido), o verbo ser é suprimido e se diz simplesmente:
"Pau, pedra, fim, caminho
Resto, toco pouco sozinho
Caco, vidro vida, sol
Noite, morte laço, anzol (...)"
Aida Hanania e Jean Lauand comparam o estilo adotado por Tom Jobim em "Águas de Março" com um dos primeiros grandes textos poéticos da literatura árabe, escrito há 1500 anos. Trata-se de uma composição do orador e poeta Quss Ibn-Sa'idah, em que este descreve a grandiosidade do mundo e convida a uma reflexão sobre a transitoriedade da condição humana. Os autores fizeram uma tradução desta poesia de Sa'idah ajustada à melodia de "Águas de Março", (a partir dos versos para que a semelhança se fizesse ainda maior, embora mantendo ainda totalmente a forma de expressão do pensamento árabe).
"(...)Noite escura, um dia de paz
O céu, um assombro, espaços siderais
Estrelas brilhando, mares a se agitar
Montes assentados, terra a atapetar
O que vive, morrendo; o que morrer, findando
Vai, vir, virá, a a-passar, passará
No céu, sinais; na terra, lição
Causa, porquê, explicação
Gente vai e não volta, qual a razão?
Sono profundo?, satisfação?
Onde nossos primeiros? Onde pais e avós?
Onde o grande poder dos fortes faraós?(...)"
Em relação à tradução acima, os autores alertam que há muito mais uso de frases nominais do que a tradução comportaria. Pois os árabes, ao invés de dizer "estrelas que brilham" ou "mares que se agitam", na verdade dizem "estrelas protagonistas no ato de brilhar" (nujúmun tazhar) e "mares protagonistas do ato de se agitar" (bihhárun tazkhar). Veja ao final desta página a poesia original em idioma árabe.
Jean Lauand e Aida Hanania são estudiosos da cultura árabe. Lauand conclui livre-docência na USP com a tese "Educação Moral e Provérbios: Os Amthal Árabes e o Pensamento de Tomás de Aquino" e é fundador do Centro de Estudos Medievais - Oriente & Ocidente, na USP. Aida é autora do belíssimo livro ilustrado "A Caligrafia Árabe e a Arte de Hassan Massoudy" (Editora Martins Fontes). A obra trata a caligrafia árabe em sua tripla dimensão: educativa, iconográfica e estética. O leitor é levado não só às origens dessa arte, a mais fiel expressão do mundo árabe-islâmico, como também à palavra alcorânica e aos alicerces da cultura árabe em geral.
Veja o texto original de Ibn-Sa'idah, com ligeiras reduções e adaptações feitas pelos autores do estudo sobre Tom Jobim. Segundo os autores, de for acrescentado ao poema árabe os "és" e os "são", ou se forem suprimidos estes verbos de "Águas de Março", fica evidente o caráter oriental das formas poéticas de Tom.
La-y-lun daj ua naharun saj
Ua sama 'un dhatu abraj
Ua nujúmun tazhar Ua jibalun mursáh
Ua bihharun taskhar Ua ardun mudháh
Ma bal an-n-asi yadhhabúna
Ma bal, ma bal hum la yarj'aúna?
Ínna fy assama'i lakhabara
Ua ínna fy-lardi la'ibara
Ayna-l-aaba'u? aaráddu faqámu?
Ayna-lfara'inatu? túriku fanámu?
Man'aasha maat ua man maat faat
Ua kulun ma hwa aatin aat
Fonte: ANBA