A influência da cultura árabe é evidente na obra dos inúmeros escritores de origem sírio-libanesa no Brasil, mas também pode ser sentida na estrutura narrativa de contos e romances de todo o Ocidente, que não seriam os mesmos sem a magnífica e eclética herança de "As Mil e Uma Noites".
Paula Quental
São Paulo - A arte de escrever, seja em prosa ou poesia, está profundamente relacionada à cultura árabe, cuja tradição da palavra escrita tem raízes no hábito da leitura do Alcorão, e as descrições literárias na vida nômade do deserto. A influência dessa cultura é sentida na estrutura narrativa do conto e do romance ocidentais, defende o crítico e escritor Caio Porfírio Carneiro, autor de "O Sal da Terra" (Editora Ática), já traduzido para várias línguas, inclusive o árabe. "A literatura árabe, para além da riqueza da imaginação, é a sutileza do como dizer - uma leveza que tem muito do universo contemplativo do deserto", ensina.
Essa herança estaria condensada na magnífica obra "As Mil e Uma Noites", conhecida dos ocidentais há apenas 300 anos, mas que reúne histórias oriundas da Pérsia e da Índia, de autores anônimos dos séculos 8 e 9, de acordo com Porfírio Carneiro. Elas foram compiladas ao longo do tempo até serem compactadas no século 15 pelos árabes, "que lhes conferiram feição definitiva e única".
"O livro deu novo alento à técnica do conto, à narrativa fantástica. Sublimação lírica que inoculou a poesia em geral. O curioso, o fantástico, sutis conceitos filosóficos. Uma narrativa ficcionada, lírica, que os árabes lançaram como foguete mágico mundo afora. Eles interpretaram o mundo e alma orientais, mas a essência é árabe", diz o escritor. "Eu que sou contista tive uma surpresa especial ao observar que está tudo lá em matéria de conto, o fantástico, o erótico, o alegórico".
"As Mil e Uma Noites" tornou-se conhecida na Europa no início do século 18 e talvez seja o livro mais traduzido do mundo, perdendo apenas para a Bíblia e o Alcorão. Para Porfírio Carneiro, o seu legado, que pode ser estendido a toda a literatura árabe, é, além disso, a linguagem musical, a estrutura narrativa que seduz, a dimensão humana, o oposto da visão científica.
"A cultura árabe é uma cultura muito doce, muito humana, muito poética, apesar dos transtornos com os quais ela é identificada nos nossos dias", afirma.
Os árabes na literatura brasileira
Apaixonado por pesquisa e por tudo o que se relaciona à literatura (é também dono de uma biblioteca de 6 mil livros e secretário-geral da União Brasileira dos Escritores, a UBE), Porfírio Carneiro, a pedido do Centro Cultural Árabe-Sírio, em São Paulo, onde fez uma palestra no último 7 de abril, tentou identificar o que há em comum entre os escritores descendentes de árabes no Brasil e sua influência na cultura brasileira.
Para começar, a lista de escritores de origem sírio-libanesa que nasceram ou adotaram o país é imensa. Raduan Nassar, Milton Hatoum, Leon Eliachar, Jorge Medauar, Jorge Tufik, Jorge Tanure, Salim Miguel, João Batista Sayeg, Carlos Nejar Malba Tahan (pseudônimo de Júlio Cesar de Souza, autor de "O Homem que Calculava", que não era árabe, mas escreveu como um), são apenas alguns deles.
O primeiro nome lembrado por Porfírio Carneiro é o do jornalista e compositor Jorge Vidal Faraj (1901-1963), "o mais romântico e lírico letrista da MPB das décadas de 1930 e 1940". Faraj foi autor de memoráveis canções gravadas por Orlando Silva, Francisco Alves, Sílvio Caldas e Carlos Galhardo. Uma das mais conhecidas é a valsa "Deusa da Minha Rua" ("A deusa da minha rua/tem os olhos onde a lua/costuma se embriagar/Nos seus olhos eu suponho/O sol, num dourado sonho/vai claridade buscar..."), em parceria com Newton Teixeira. Um lirismo que, segundo o escritor, tem inequívoca raiz árabe.
Nem todos buscaram ou buscam escrever sobre as próprias origens, como o octogenário escritor e jornalista Salim Miguel, nascido no Líbano e radicado em Santa Catarina, autor de "Nur na Escuridão" (Editora Top Books). O livro, que conta a história de sua família, libaneses que aportaram no Rio de Janeiro sem saber o português - luz, nur em árabe, foi a primeira e emblemática palavra aprendida pelo patriarca Yussef, pai de Salim - é o 18º do autor, e foi premiado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).
O que une a maioria dos escritores brasileiros descendentes de árabes, segundo Porfírio Carneiro, são os traços que podem ser remetidos à sua origem comum: além do lirismo, do aspecto humano, a "sobriedade da prosa e um grande talento para trabalhar personagens infantis".
"O poeta filho de libaneses Jorge Tufik, por exemplo, tem dado contribuição importantíssima à literatura nacional: na sua obra, repleta de lendas da Amazônia, a linguagem poética tem o sopro dos ventos das 'Mil e Uma Noites'", descreve ele. Tufik e tantos outros, entre os quais o premiadíssimo Raduan Nassar ("Um Copo de Cólera" e "Lavoura Arcaica", ambos livros adaptados para o cinema), considerado um dos melhores escritores brasileiros contemporâneos, têm, de acordo com Porfírio Carneiro, "a leveza do lavor poético, uma escrita que não cai nas construções apenas cerebrais".
A influência dos árabes na literatura brasileira, porém, começa nas marcas desta cultura deixadas em Portugal, já que os árabes dominaram a Península Ibérica por oito séculos. São milhares de palavras portuguesas de origem árabe. "A cultura ibérica é impregnada da arte mourisca", diz o escritor. E isso para além dos vocábulos, também na alma singela e poética.
Fonte: ANBA