31.7.04

Obra de Malba Tahan, o mais árabe dos brasileiros, segue há décadas como best-seller

O carioca Júlio César de Mello e Souza (1895-1974), mais conhecido como Malba Tahan, e autor de "O Homem que Calculava", foi um dos grandes difusores da cultura árabe entre nós. Escreveu mais de 50 livros sob o pseudônimo - depois incorporado à carteira de identidade com a autorização do presidente Getúlio Vargas - e inovou ao ensinar matemática se utilizando da estrutura narrativa sedutora dos contos orientais. Seu livro mais famoso, lançado em 1938, está na 63ª edição e em maio freqüentava a lista dos mais vendidos.

Andréa Estevão

Rio de Janeiro - Desde a primeira metade do século 20, várias gerações de jovens brasileiros têm sido apresentadas à cultura árabe através do mais árabe dos cariocas, o professor de matemática Júlio César de Mello e Souza, ou, como é mais conhecido, Malba Tahan. Seu livro mais famoso, "O Homem que Calculava", que combina aventuras em cenários típicos da geografia árabe com encantadoras soluções de problemas de álgebra e aritmética, já está na 63a edição, pela editora Record. A publicação consegue o feito de aparecer, ainda hoje, na lista dos cinco livros infanto-juvenis mais vendidos no Brasil, segundo pesquisa publicada no jornal O Globo, do dia 22 de maio de 2004.

Ao todo, Júlio César/Malba Tahan escreveu 103 livros (somados os de ficção, didáticos e científicos) e vendeu mais de 2 milhões e 600 mil exemplares.

O matemático Júlio César de Mello e Souza se apaixonou pela cultura árabe quando criança, ao ler os "Contos de Mil e Uma Noites". Mas foi em 1919, aos 23 anos, que mergulhou nos estudos da cultura e língua árabes. Entre 1919 e 1925, se dedicou a ler o Talmude e o Alcorão e a conhecer a história e a geografia dos países árabes.

Tal empreendimento traduz-se na delicadeza com que constrói seus personagens; na sensibilidade com que tece os diálogos repletos de poesia e sabedoria; na verossimilhança dos ambientes descritos. Crianças ou adultos, ficamos completamente envolvidos pela forma como o autor apresenta a suntuosidade de um salão, ou a sedução de uma tenda repleta de turbantes, jóias ou tecidos. Tal acuidade nas descrições se torna um feito ainda mais maravilhoso quando nos deparamos com o fato de que Júlio César jamais esteve no Oriente.

Grande narrador de histórias, se tivesse nascido no Cairo ou na Constantinopla de um outro tempo, Júlio César poderia ter sido considerado um verdadeiro cheik el-medah (prestigiado chefe de corporação de contadores de história, que havia em algumas cidades).

Na apresentação da tradução brasileira da obra "As Mil e Uma Noites", da editora Ediouro, ele afirma: "é a lenda a expressão mais delicada da literatura popular. O Homem, pela estrada atraente dos contos e histórias, procura evadir-se da vulgaridade cotidiana, embelezando a vida com uma sonhada espiritualidade". O professor Mello e Souza diz, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som, do Rio de Janeiro, ter escolhido contar fábulas e lendas como um árabe porque nenhum povo jamais superou os árabes na arte de contar histórias e na paixão em ouvi-las.

Estréia em A Noite

Malba Tahan foi apresentado aos cariocas, em 1925, no extinto vespertino carioca A Noite, de Irineu Marinho, através de uma biografia fictícia supostamente redigida pelo também imaginário tradutor, Breno Alencar Bianco. Tanto o escritor quanto o tradutor são frutos da prodigiosa inventividade de Júlio César, que a eles deu vida e produção literária, numa coluna cujo título era "Contos de Malba Tahan".

Ali Lezid Izz Eduim Salim Hark Malba Tahan teria nascido em 1885, na aldeia de Muzalit, perto de Meca, tornando-se ainda muito jovem, prefeito (queimaçã) de El Medina. Rico, com a herança deixada pelo pai, Tahan teria viajado por vários países como a Rússia, a Índia e o Japão. Conta, também, a "biografia" que ele teria falecido em 1921, na luta pela libertação de uma tribo na Arábia Central.

Quase todos dos mais de 50 livros escritos sob o pseudônimo Malba Tahan têm como personagens xeques, beduínos, califas; e se ambientam no deserto, em hospedarias e palácios, em Damasco, em Bagdá ou em aldeias persas. Seus livros narram saborosas aventuras, cheias de magia - muitas delas são inspiradas em lendas e contos árabes - e inúmeras referências a termos e expressões típicas, tais como: Alaú Abkar! (Deus é grande!), chamir (chefe de caravana), além dos mais tradicionais ensinamentos da cultura árabe.

É quase uma afirmação imprecisa dizer que Malba Tahan é o pseudônimo de Júlio César de Mello e Souza. Primeiro, porque Júlio César se auto-denominava Malba Tahan para seus alunos e alunas do Colégio Pedro II e do Instituto de Educação, chegando a carimbar, como visto para os trabalhos demandados, o nome em caracteres da língua árabe. Segundo, porque a popularidade do nome árabe era tamanha, que o presidente Getúlio Vargas autorizou o acréscimo do mesmo na carteira de identidade de Júlio César. Terceiro, porque tanto sua obra literária quanto suas idéias sobre o ensino das ciências em geral, e da matemática, em particular, são referidos internacionalmente a Malba Tahan. Basta uma rápida pesquisa na internet para constatar a importância de Malba Tahan e do seu best-seller "O Homem que Calculava", citados em sites de várias nacionalidades inclusive em grego, alemão e holandês.

Admirado por Lobato e Borges

O livro "O Homem que Calculava", publicado pela primeira vez em 1938, já foi traduzido para mais de 12 idiomas, entre eles o inglês, tanto nos EUA quanto na Inglaterra, o espanhol, o italiano, o francês e o catalão. Foi premiado pela Academia Brasileira de Letras e despertou a admiração de escritores imaginativos como Monteiro Lobato e Jorge Luís Borges - este último, um amante confesso dos contos árabes.

O livro conta as aventuras de Beremiz Samir, homem com exímia habilidade para o cálculo. Beremiz resolvia com mestria, leveza e precisão contratempos e situações espinhosas de qualquer natureza, através do uso da matemática.

Júlio César nasceu dia 6 de maio de 1895, no Rio de Janeiro, e faleceu em Pernambuco, em 18 de junho de 1974, onde apresentava uma das suas inúmeras e requisitadas palestras. Deixou dois importantes registros sobre sua vida e obra: seu livro de memórias cujo título é "Acordaram-me de Madrugada", e seu depoimento gravado no Museu da Imagem e do Som (MIS), do Rio de Janeiro. Antes de morrer, pediu para ser enterrado sem homenagens, flores ou coroas, como uma pessoa simples, originária do Oriente Médio. Para justificar que não gostaria que adotassem luto em sua homenagem, citou versos do compositor brasileiro Noel Rosa: "Roupa preta é vaidade/ para quem se veste a rigor/ o meu luto é a saudade/ e a saudade não tem cor".


ANBA